Saúde Mental https://saudemental.blogfolha.uol.com.br Informação para superar transtornos e dicas para o bem-estar da mente Tue, 14 Dec 2021 02:30:19 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 ‘Dez Dias num Hospício’, de Nellie Bly, mostra negligência e desrespeito com a saúde mental que duram até hoje https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/31/dez-dias-num-hospicio-de-nellie-bly-mostra-negligencia-e-desrespeito-com-a-saude-mental-que-duram-ate-hoje/ https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/31/dez-dias-num-hospicio-de-nellie-bly-mostra-negligencia-e-desrespeito-com-a-saude-mental-que-duram-ate-hoje/#respond Tue, 31 Aug 2021 10:00:04 +0000 https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/juqueri-300x215.jpg https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/?p=992 “Bem, é melhor você não esperar nenhuma gentileza aqui, porque você não vai receber.” A frase foi dita por uma enfermeira do Hospício de Alienados de Blackwell’s Island a Nellie Bly, uma jornalista que, em 1887, fingiu ser louca para conseguir se internar no local e fazer uma série de reportagens sobre como os internos eram tratados lá.

Era a primeira noite de Nellie na instituição, mas ela já havia passado por um exame médico estapafúrdio –no qual um médico e essa mesma enfermeira ficavam se paquerando e mal lhe davam atenção–, jantado pão com manteiga rançosa e cinco ameixas secas, tomado um banho gelado –na mesma banheira em que outras mulheres também se lavaram, sem trocar a água— e vestido uma camisola com o corpo ainda úmido.

Quando ouviu a resposta ríspida da senhorita Grupe –a enfermeira–, Nellie estava apenas pedindo uma roupa seca. Era fim de setembro em Nova York. “As pacientes estavam azuladas de tanto frio”, escreveu no texto que seria publicado no jornal New York World.

Posteriormente, as reportagens se transformaram no livro “Dez Dias num Hospício”, que agora é reeditado pela editora Fósforo, com prefácio da jornalista da Folha Patrícia Campos Mello e tradução de Ana Guadalupe.

Os relatos de Nellie denunciam um sistema falho que se estendeu até o século 20 e só começou a ser desmantelado com a reforma psiquiátrica, a partir dos anos 1970. Ela não tinha nenhum transtorno mental, mas foi examinada por vários médicos que atestaram sua insanidade. “Quanto mais eu agia e falava com lucidez, mais louca me consideravam”, diz.

A jornalista também conta histórias de outras mulheres que foram internadas junto com ela e que pareciam tão sãs quanto, inclusive uma alemã, a senhora Louise Schanz, que não sabia falar inglês e foi encaminhada ao internato pelo próprio filho. Muitas pacientes que se comportavam normalmente haviam sido deixadas lá por maridos e familiares, talvez como uma maneira de se livrarem delas.

Assim como ocorreu em outros hospitais psiquiátricos no mundo todo –no Brasil, os casos mais famosos são os do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais, que deu origem ao livro “Holocausto Brasileiro“, de Daniela Arbex (editora Intrínseca), e do Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha (SP), cuja história é contada em “Cinzas do Juquery”, de Daniel Navarro Sonim e José da Conceição (editora Noir)–, o Blackwell’s Island era um depósito de gente. Nas palavras de Nellie, “uma ratoeira humana; é fácil entrar, mas, uma vez lá, é impossível sair”.

As internas eram vítimas de negligência médica, maus-tratos, tortura e sadismo por parte dos profissionais de saúde. Elas eram agredidas pelas enfermeiras e sofriam ameaças se tentassem contar qualquer desses episódios aos médicos. Estes, por sua vez, não lhes davam atenção e diziam que suas queixas eram delírios.

Além de viverem constantemente com medo de apanhar e com fome –às vezes era servida comida estragada–, as pacientes eram encarregadas da faxina do ambiente. No tempo livre, as que estavam na mesma ala que Nellie eram obrigadas a ficar sentadas eretas em um banco, sem poder mudar de posição, das 6h às 20h. “À exceção da tortura, que tratamento levaria uma pessoa à loucura com mais rapidez? Aquele era mesmo um grupo de mulheres internadas para serem curadas?”, questiona a autora.

De fato, não era feito nenhum esforço para que essas internas fossem tratadas. Nellie cita o uso de morfina (opioide) e cloral (hipnótico), mas o surgimento dos psicofármacos só aconteceria na década de 1950. A eletroconvulsoterapia, que ainda é utilizada em casos específicos, e intervenções absurdas como a lobotomia foram desenvolvidas em 1930.

No Blackwell’s Island e em outras instituições psiquiátricas, não havia o conceito de bem-estar, recuperação ou reinserção desse público na sociedade. A existência desses lugares se dava em um contexto em que a prática era isolar e excluir aqueles que incomodavam ou não se encaixavam no ideal de moral e bons costumes, fossem pessoas com transtornos mentais, mulheres que não obedeciam aos maridos, homossexuais, subversivos, pobres ou velhos. Essa conduta, executada por séculos, circundou o debate sobre saúde mental de preconceitos e estigmas que persistem até os dias atuais.

Dez Dias num Hospício
Nellie Bly, editora Fósforo, 112 págs., R$ 49,90

Siga o blog Saúde Mental no TwitterInstagram Facebook.

]]>
0
Isolar quem é ‘diferente demais’ faz parte do estigma associado às doenças mentais, explica psiquiatra https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/isolar-quem-e-diferente-demais-faz-parte-do-estigma-associado-as-doencas-mentais-explica-psiquiatra/ https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/09/isolar-quem-e-diferente-demais-faz-parte-do-estigma-associado-as-doencas-mentais-explica-psiquiatra/#respond Tue, 09 Feb 2021 10:00:29 +0000 https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/juqueri-300x215.jpg https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/?p=631 O estigma associado às doenças mentais foi tema da redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano. A preocupação sobre os cuidados com a saúde mental cresceu desde o início da pandemia da Covid-19.

Uma pesquisa divulgada em julho de 2020, realizada por cientistas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), mostrou que mais da metade da população adulta do estado de São Paulo afirmou sentir ansiedade ou nervosismo com frequência desde o começo da quarentena.

Apesar disso, falar sobre transtornos mentais ainda é um tabu. “Muitas vezes, o paciente não busca ajuda por vergonha ou medo de que a sociedade o exclua ou o desvalorize”, conta a psiquiatra Jéssica Martani.

No passado, explica a médica, as pessoas que eram consideradas “diferentes demais” ou que “incomodavam demais”, como as que tinham ideias contrárias à Igreja ou ao governo, eram isoladas e encarceradas.

Esse estigma se perpetua até os dias de hoje, quando os sofrimentos psíquicos são ridicularizados ou minimizados com comentários como “depressão é falta de Deus” ou “falta de lavar louça”, observa Jéssica.

De onde vem esse estigma associado aos transtornos mentais? 
O estigma está condicionado a um conjunto de fatores históricos e um conjunto de dogmas cumulativamente passados de geração para geração. A partir daí, criam-se crenças tão enraizadas que os preconceitos começam a passar despercebidos, começam a se tornar­ normais e se entrelaçar em nossas mentes, passando por fim a virar uma verdade indubitável.

Esses preconceitos fazem, então, parte do cotidiano, das falas e dos pensamentos, ditando a cultura de uma sociedade.

O estigma e o preconceito em relação aos pacientes psiquiátricos surgiram há muito tempo. Na história da psiquiatria, eram colocados em encarceramento todas as pessoas que eram consideradas “diferentes demais” ou que “incomodavam demais”, como, por exemplo, pessoas que iam contra as leis, contra o governo. Na época da Inquisição, os que tinham condutas consideradas libertinas e contrarias aos dogmas da Igreja Católica eram perseguidos, torturados e encarcerados.

Por muito tempo a doença psiquiátrica foi associada a questões místicos-religiosas, como possessão demoníaca. Mais uma vez, essas pessoas deveriam ser encarcerados, punidos e eliminados de todo e qualquer direito de cidadão. Como ainda não havia estudos e nem medicamentos, a única maneira de lidar com os pacientes era trancá-los excluí-los e, infelizmente, esquecê-los.

Foi apenas durante o Iluminismo, no século 18, que o médico francês Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, começou a falar sobre os direitos dessas pessoas de serem cuidadas de maneira digna, sem a necessidade de atos violentos e com melhores condições de vida.

Porém, tal conceito não foi aceito e difundido tão rapidamente e, por muito tempo ainda, os doentes psiquiátricos continuaram a viver sob as piores formas de tratamento.

No Brasil, a situação não foi diferente. Um dos pontos históricos importantes aconteceu na época da ditadura militar, em que também pessoas consideradas subversivas eram internadas em manicômios, recebendo eletroconvulsoterapia de maneira errada, sem indicação e como forma de punição.

É claro que todos esses eventos deixaram marcas até os dias atuais. Muitas pessoas não buscam ajuda por terem medo do psiquiatra, medo dos tratamentos, medo de ser internado.

Também não buscam ajuda, afinal, não são loucos, não são indignos de estar em sociedade, não merecem sentir na pele os preconceitos enraizados suas próprias mentes.

Pacientes com doenças psiquiátricas são muitas vezes considerados preguiçosos, perigosos, indignos de confiança, indignos de fazer grandes realizações, são desacreditados, vitimas dignas de pena. E esta aí o triste estigma de séculos de história que, muitas vezes, é reafirmado por meio dos veículos de comunicação.

Não é incomum observarmos a grande barreira que as pessoas colocam ao ficar perto de um paciente psiquiátrico internado, até mesmo medo de olhar nos olhos. Não é incomum a repulsa, o desconforto.

Essa questão do afastamento da sociedade ainda é muito forte? 
Sim, o afastamento é uma forma de preconceito e muito retrocede todo o esforço que estamos fazendo para combater o estigma associado às doenças mentais.

Precisamos espalhar informações para que as pessoas saibam nomear cada síndrome, e não tratar tais doenças de forma pejorativa. Em vez de ajudar, tratar doença mental como brincadeira só diminui e exclui ainda mais o individuo, desvalorizando a doença, tratando como piada algo de extrema importância e seriedade.

E, pior do que isso, aumentando o preconceito e dificultando as pessoas que precisam a buscarem ajuda, aceitarem o seu diagnóstico e se tratarem. Muitas vezes, o paciente não busca ajuda por vergonha ou medo de que a sociedade o exclua ou o desvalorize.

Existiu algum momento na história em que a saúde mental começou debatida mais seriamente? Ou esse momento está acontecendo agora, no contexto da pandemia da Covid-19 e do isolamento social? 
Temos alguns marcos e algumas pessoas que foram essenciais para questionar as práticas com as quais os pacientes eram submetidos, como com Philippe Pinel, no século 18, quando começou a se falar sobre tratar os pacientes de forma mais humanizada.

Também temos Dorothea Dix, uma ativista que viveu no século 19, nos Estados Unidos, que lutou por melhorias e contra o tratamento cruel e sem estrutura, por melhores condições nos locais onde estavam os doentes psiquiátricos.

Enfim, não podemos esquecer dos psicanalista Freud e Jung, no início do século 20, entre outros grandes nomes que transformaram e construíram praticas e tratamentos.

No Brasil, foi na década de 1980 que se iniciou a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Todos esses processos culminaram no surgimento dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), residências terapêuticas e centros de convivência que buscam a reintegração do paciente na sociedade, e não a sua exclusão.

Nos últimos anos, as possibilidades de comunicação se multiplicaram e hoje qualquer pessoa pode falar sobre saúde mental. Essa liberdade abriu espaço para mídias sociais, rádios em formato digital, podcasts, ebooks, enfim, observo um aumento de informações sobre saúde mental e essas mídias se unindo.

Atualmente, pessoas famosas e influenciadores conversam e falam mais abertamente sobre seus casos depressão, ansiedade, bipolaridade. Isso é incrível para diminuir o estigma. Pois doença psiquiátrica não é coisa de louco, basta ser humano para sofrer de um transtorno.

Além da pandemia da Covid-19, é possível notar também uma pandemia de doenças psíquicas como TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), depressão, síndrome do pânico, alcoolismo, vício em jogos. Sentimos diariamente agora a importância da saúde mental, e essa necessidade aumentou muito a discussão sobre o tema.

Mesmo com a ampliação do debate sobre saúde mental, muitas pessoas ainda sentem vergonha e até medo de serem demitidas ao comentar algum transtorno mental no ambiente de trabalho 
Infelizmente, ainda vejo muito preconceito e incompreensão no ambiente de trabalho. Os pacientes costumam se sentir diminuídos, muitos têm a impressão de estarem sendo julgados ou até mesmo têm a impressão que as pessoas reagem como se eles estivessem mentindo para não trabalhar.

Além da tristeza e do momento difícil que estão passando, ainda precisam se deparar com a falta de empatia dos colegas de profissão.

Muitos têm vergonha de mostrar um atestado médico com o CID (Classificação Internacional de Doenças) que represente uma doença psiquiátrica. Têm medo de que, com isso, possam ser prejudicados em seus trabalhos, bem como prejudicar sua ascensão a outros cargos.

Ainda mais nos dias de hoje, a “era da produtividade” em que quanto mais se trabalha, mais digno e honroso você é. Os pacientes têm vergonha de se ausentar do trabalho, mesmo com indicação médica. E, quando se afastam, muitos têm sentimento de culpa e iniciam dilemas e inseguranças sobre sua autoimagem como profissionais.

Que linha deve seguir o debate na sociedade para diminuir o estigma em relação às doenças mentais?
Não há outra maneira que não seja a informação. É preciso falar abertamente que não há problema em buscar ajuda, que psiquiatra e psicólogo não são “coisas de louco”e sim que tudo isso é coisa de gente saudável.

É explicar que depressão não é frescura, não é preguiça, não é mimimi. Assim como também não é falta de Deus, não é falta de lavar louça, entre outros absurdos que a gente ouve.

É dar o exemplo respeitando quem tem doenças mentais. Não julgar, não brincar com os termos médicos, não utilizá-los de forma pejorativa.

É ouvir quem está precisando de ajuda e olhar nos olhos do paciente psiquiátrico que se encontra com prognostico mais grave. Olhar sem medo, olhar como uma pessoa igual a você, porque, sim, pode acontecer com qualquer pessoa, poderia ser seu filho, sua mãe, poderia ser você.

É debater e informar para que a empatia não seja desenvolvida somente à custa de viver na pele essa mesma situação.

 

Siga o blog Saúde Mental no TwitterInstagram Facebook.

]]>
0