Já tive paciente que ouviu de outro terapeuta que racismo não existe, diz psicólogo Lucas Veiga
A população negra enfrenta preconceitos e violências que afetam diretamente sua saúde mental. Para piorar, os cursos de graduação em psicologia não costumam incluir em seus currículos bibliografias de autores negros, de forma que os profissionais saem das universidades sem conhecimento suficiente para lidar com questões relacionadas ao racismo em seus consultórios.
Esse cenário de exclusão levou o psicólogo e mestre em psicologia clínica Lucas Veiga, 30, a criar o curso Introdução à Psicologia Preta. “É um curso em que abordo não só os efeitos do racismo nas subjetividades, mas especialmente os caminhos de promoção de saúde e as estratégias para a afirmação plena da existência de pessoas negras”, explica.
“Já ouvi mais de uma vez de pacientes negros e negras que fizeram terapia com profissionais brancos que não se sentiam escutados, que por vezes precisavam explicar o porquê do seu sofrimento com determinada situação e que isso era exaustivo. Já tive paciente que ouviu de outro terapeuta que o racismo não existe”, afirma o psicólogo, que atende em consultório na região central do Rio de Janeiro.
Para Lucas, o encontro de um profissional negro com um paciente negro restabelece o senso de pertencimento. “Gosto de pensar a clínica como um espaço de aquilombamento. Os quilombos foram espaços em que era possível para os africanos viverem com liberdade, era possível entrar em contato com as tecnologias ancestrais de preservação da vida, da natureza, das relações humanas.”
Leia a seguir a entrevista com o psicólogo.
Por que é importante fazer um recorte para a população negra quando falamos em saúde mental?
Primeiramente, é preciso entender que o recorte já existe socialmente. Quando a gente fala em psicologia preta, a gente não está criando um recorte. Esse recorte racial se materializa numa série de estatísticas, por exemplo, 75% dos brasileiros mais pobres são negros, a expectativa de vida de pessoas negras é seis anos a menos do que a de pessoas brancas, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, 60% dos jovens que se suicidam são negros. Esses dados revelam um recorte que tem impactos na saúde mental da população negra.
O racismo não é um episódio isolado, vivemos numa sociedade estruturalmente racista. Quando uma pessoa sofre um crime de racismo isso é, na verdade, uma das expressões do racismo enquanto estrutura. Durante quase quatro séculos houve escravidão no Brasil e, após a abolição, em 1888, não foram criadas políticas públicas de reparação aos danos materiais e emocionais que o período produziu na população negra. Como descendentes de africanos nascidos no pós-abolição, ainda que não tenhamos vivido os horrores da escravidão do modo como nossos ancestrais viveram, experimentamos ainda os efeitos desse período.
O pós-abolição no Brasil, diferentemente dos EUA e da África do Sul, por exemplo, não foi marcado por uma segregação racial de tipo assentos de ônibus separados entre negros e brancos, espaços públicos e privados separados entre negros e brancos. Nós vimos acontecer no Brasil o surgimento de um mito que é o mito da democracia racial, de que não existiria racismo no país devido à nossa intensa miscigenação, mas na verdade, houve e há segregação racial no país como os dados estatísticos que citei anteriormente revelam.
Então esse recorte, essa diferença, já está dada. Falar em psicologia preta não é fazer um recorte, é admitir que esse recorte já existe e, a partir daí, pensar o impacto disso tudo na saúde mental. Vivemos em um país antinegro e isso tem efeitos nocivos sobre as subjetividades negras.
Em que momento você percebeu que essa abordagem era importante? Foi durante a graduação?
Entrei na Universidade Federal Fluminense em 2008, num período anterior às cotas. Numa turma de 45 alunos, éramos cinco negros. Os professores eram todos brancos. Para não ser injusto, teve um professor negro no final da graduação. Mas isso não aparecia como uma questão.
Na graduação não eram estudados intelectuais negros. Há um apagamento das produções de conhecimento negras na psicologia no Brasil. Ao limitar-se às conceituações brancas e europeias, a psicologia brasileira deixa de contemplar 54% da população do país que é negra. A subjetividade negra é ignorada na maioria das graduações em psicologia, e um dos efeitos diretos disso são pacientes negros serem vítimas de racismo pelos profissionais que deveriam acolhê-los e, ao mesmo tempo, sentirem que não estão sendo compreendidos em suas questões.
Há certa negligência na graduação que não nos forma para o trabalho com a população negra. Fui me dar conta dessa falta depois que me formei e fui trabalhar na Casa Viva Bangu, um espaço de acolhimento da prefeitura para adolescentes de 12 a 17 anos que viviam em situação de rua, sendo que 95% deles eram negros.
Foi lá que entendi que as minhas ferramentas de trabalho não eram suficientes para pensar em estratégias de saúde mental para aqueles adolescentes que viviam em extrema vulnerabilidade social e faziam uso abusivo de drogas. E essa realidade era efeito do racismo estrutural sobre seus corpos e suas subjetividades.
Então fui pesquisar caminhos para a promoção de saúde mental nesse contexto e, juntamente com outras colegas, me encontrei com a black psychology, que surgiu nos EUA nos anos 1960 a partir do trabalho de psicólogos negros como Wade Nobles e Naim Akbar, sendo a black psychology a construção de teorias e práticas em psicologia voltada tanto para o tratamento dos efeitos do racismo na subjetividade de pessoas negras, quanto para o resgate de cosmogonias africanas em vias da promoção de saúde e bem-estar emocional.
E o que chamo de psicologia preta não se restringe à black psychology, mas inclui a produção de conhecimento negro da diáspora africana pelo mundo. Diversos intelectuais negros e negras dedicaram-se à produção de conhecimento sobre saúde mental. Já na década de 1930 a psicanalista brasileira Virgínia Bicudo realizou uma vasta pesquisa com negros em São Paulo, que resultou na sua dissertação de mestrado “Atitudes Raciais de Negros e Mulatos em São Paulo”. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon, em seu trabalho clínico e acadêmico, escreveu, nos anos 1940, o livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, referência nos estudos da saúde mental da população negra. Nos anos 1980, a psiquiatra e psicanalista brasileira Neusa Santos Souza escreveu o livro “Tornar-se Negro”, em que fez uma releitura de conceitos fundamentais da psicanálise a partir da experiência clínica com pessoas negras.
Desde que se formou, você acha que houve avanços nos currículos das graduações em psicologia?
Sim, acho que tivemos alguns avanços nas graduações. Principalmente em consequência das políticas afirmativas, como as cotas, que aumentaram a quantidade de estudantes negros nos cursos e, com isso, possibilitaram o fortalecimento ou mesmo o surgimento de coletivos negros nas universidades que vêm pressionando os departamentos a incluírem pensadores negros e negras nas bibliografias.
Mas essa inclusão ainda é pouco expressiva, tem acontecido por pressão, como efeito do movimento dos estudantes. Ainda depende muito da sensibilização dos professores pelo tema, não está institucionalizado, não entrou como ementa obrigatória na maioria dos cursos. Ainda há muito o que avançar.
Como é o curso Introdução à Psicologia Preta que você criou?
O curso surgiu a partir das minhas pesquisas teóricas e da minha experiência clínica. Quanto mais eu estudava e produzia conhecimento sobre as subjetividades negras, mais crescia em mim o desejo de partilha desses conhecimentos com outros profissionais. Organizei então um curso introdutório de oito horas de duração e ministrei pela primeira vez em janeiro de 2019, no Museu da República, no Rio de Janeiro. A partir daí, começaram a surgir muitos convites e viajei para vários estados, partilhei esses conhecimentos com cerca de quinhentos alunos e alunas em quinze edições do curso.
Foi uma experiência de cura. Os relatos que recebo das pessoas que participaram são que o curso mudou a vida delas, as fez olhar para o passado, para o presente e para o futuro de uma forma que ainda não haviam acessado, ampliou a compreensão delas sobre suas questões de saúde mental, ampliou a escuta clínica delas para o atendimento de pacientes negros e negras.
É um curso em que abordo não só os efeitos do racismo nas subjetividades, mas especialmente os caminhos de promoção de saúde e as estratégias para a afirmação plena da existência de pessoas negras. A última turma foi em novembro do ano passado, mas o curso agora está disponível online no meu site. Preparei o módulo 2 do curso e estava com agenda em várias cidades no primeiro semestre de 2020, mas a pandemia impediu a realização. Pretendo ministrar presencialmente o módulo 2 tão logo a imunização se efetue.
Quais são os principais problemas que os pacientes, homens e mulheres negros, levam ao consultório?
As questões são muito singulares. Quando a gente fala em saúde mental da população negra não se trata de uma homogeneização, pelo contrário, se trata da afirmação da diferença e da singularidade no seio de uma coletividade que passa por experiências semelhantes no que se refere à violência racial. Cada pessoa experimenta e elabora as suas vivências à sua maneira, ainda que haja efeitos do racismo que se apresentam de forma semelhante em muitas pessoas.
Uma das questões que é muito presente na clínica com pessoas negras é a sensação de se sentirem sem lugar, não pertencentes aos espaços, não valorizados. E a sensação de não pertencimento pode atrapalhar a pessoa nos processos de trabalho e nas relações afetivas, como também pode ser usado como motor para a criação de espaços e relações em que se possa se sentir pertencente e valorizado como pessoa. Então, como cada pessoa lida com os impactos do racismo é sempre singular, ainda que os efeitos sejam sobre a coletividade.
Outra questão bastante presente é certo silenciamento sobre experiências de violência racial. Muitos pacientes revisitam cenas de racismo pela primeira vez quando entram em análise e esse processo de se encontrar com as feridas raciais é muito doloroso, ao mesmo tempo em que olhar pra essas feridas é caminho para tratá-las e para criar ou fortalecer um senso de valor próprio, de autoestima, de coragem, de beleza, de criação de modos de ser, estar, sentir, desejar e pensar inéditos.
O problema é que eu já ouvi mais de uma vez de pacientes negros e negras que fizeram terapia com profissionais brancos que não se sentiam escutados, que por vezes precisavam explicar o porquê do seu sofrimento com determinada situação e que isso era exaustivo. Já tive paciente que ouviu de outro terapeuta que o racismo não existe. E isso diz tanto da formação em psicologia no Brasil, quanto dos efeitos do racismo nas pessoas brancas que pode passar por se experimentarem como não tendo racialidade, de acharem que não têm responsabilidade sobre o racismo estrutural ou de terem muita dificuldade em se relacionar com tudo aquilo que não é espelho, dentre outros efeitos.
O encontro de um profissional negro com um paciente negro restabelece o senso de pertencimento que eu havia falado anteriormente. Gosto de pensar a clínica como um espaço de aquilombamento. Os quilombos foram espaços em que era possível para os africanos viverem com liberdade, era possível entrar em contato com as tecnologias ancestrais de preservação da vida, da natureza, das relações humanas.
Movimentos como o Black Lives Matter, além de denunciar a violência contra a população negra, também têm efeitos positivos na saúde mental nessa população?
Sim. O Black Lives Matter surge como uma maneira de denunciar e combater a violência policial contra a população negra. As pessoas negras estão constantemente sob a iminência de sofrer algum tipo de violência. Para um policial matar um homem que já está rendido e algemado, como no caso do George Floyd, é preciso muito ódio. O afeto que conduz a violência racial é o afeto de ódio. E o racismo se manifesta de muitas maneiras, como quando uma pessoa branca atravessa a rua ou segura a bolsa quando vê uma pessoa negra se aproximando, quando a pessoa negra é perseguida por um segurança no mercado, até chegar ao extremo do homicídio. E isso, sem dúvida, tem reflexo na saúde mental da população negra.
Quando esse ódio que é projetado sobre os corpos e as subjetividades negras é introjetado pode resultar num doloroso processo de auto ódio. Essa engrenagem subjetiva de introjetar o sentimento do outro como sendo seu é muito semelhante ao que se dá com uma vítima de abuso. Por vezes, a vítima sente-se culpada pelo ocorrido, sendo que esse sentimento de culpa deveria ficar com o abusador. Culpa e auto ódio se atravessam na experiência de elaboração do trauma de uma violência.
Para isso não acontecer, para a pessoa negra não introjetar o ódio racial que é projetado sobre ela, é preciso devolvê-lo para as instituições, devolver para o abusador a responsabilidade pela violência. O Black Lives Matter faz isso. A organização coletiva da população negra tem esse efeito de devolução, de enfrentando ao racismo, de afirmação da sua dignidade e humanidade tanto através dos movimentos sociais, quanto por meio das produções de conhecimento, das produções artísticas. A pessoa deixa a posição de auto ódio para passar a uma posição de empoderamento.
Algumas pesquisas mostram que a pandemia da Covid causou mais mortes entre os infectados negros. De que forma você acha que a pandemia também afeta a saúde mental da população negra?
A pandemia escancarou uma questão anterior a ela, fez a gente olhar de uma nova forma uma realidade que já estava na nossa cara, como a precariedade do acesso à saúde. Saúde mental e saúde física não são coisas separadas. Se a gente for pensar comorbidades que podem agravar a infecção pelo coronavírus, como diabetes e hipertensão, por exemplo, a gente percebe que é predominante na população negra. Por quê? Diabetes e hipertensão são mais comuns nas pessoas negras periféricas, que têm menos acesso à saúde e que enfrentam diariamente experiências altamente estressantes tanto devido à precariedade material, quanto ao contato mais constante com a violência do Estado.
As vivências estressantes liberam cortisol na circulação sanguínea, o hormônio do estresse, e o cortisol aumenta a produção de glicose. Considerando o contato permanente com situações altamente estressantes, a produção excessiva de glicose oriunda disso pode levar ao surgimento de doenças como diabetes e hipertensão. Pesquisas indicam que a população negra teria predisposição genética para essas doenças, mas predisposição não é determinante, o que vai definir se a pessoa vai desenvolver ou não a doença é o ambiente em que ela está inserida. Além disso, o adoecimento mental da população negra, como os transtornos de ansiedade e a depressão estão, na maioria dos casos, relacionadas diretamente com o racismo.
Levando essas questões em consideração, não dá para promover saúde mental sem promover distribuição de renda e melhoria da qualidade geral de vida da população negra.
Para quem quer aprender mais sobre o que o racismo pode provocar na saúde mental das pessoas, que trabalhos você indica?
Como leitura introdutória sugiro o livro “Tornar-se Negro”, publicado pela psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, em 1983.
Também indico o trabalho do Instituto Amma – Psique e Negritude, fundado pela Maria Lucia Silva juntamente com outras psicólogas negras. O instituto oferece formação e atendimentos clínicos.
No meu site (descolonizando.com) disponibilizo textos, artigos e vídeos sobre o tema, bem como o curso Introdução à Psicologia Preta.