2020 nos obrigou a lidar com a frustração, sentimento que a sociedade mais tenta evitar, diz psicóloga

Festas que estavam sendo planejadas, viagens, cursos. Foram muitos os projetos para 2020 que precisaram ser cancelados, ou ao menos postergados, por causa da pandemia do novo coronavírus.

Com o relaxamento das restrições de distanciamento social em outubro, parecia que a quarentena ia dar uma trégua e que seria possível reunir a família nas festas de fim de ano. No entanto, o aumento de casos de Covid-19 no país nas últimas semanas frustrou também esses planos.

Frustração, aliás, está entre os sentimentos mais comuns a todos neste ano que está acabando, observa a psicóloga Ana Gabriela Andriani.

“Não há como evitar a frustração. Um dos grandes problemas da nossa sociedade hoje é esse, que a gente tenta evitar a frustração”, diz.

Andriani explica que faz parte do comportamento humano se planejar para tentar ter garantias de que as nossas expectativas serão sempre alcançadas. Porém, não saber se adaptar a situações imprevistas pode gerar angústia e sintomas depressivos.

“É importante viver a frustração porque ela faz a gente se expandir, ressignificar os acontecimentos e amadurecer”, afirma.

A seguir, a psicóloga comenta os desafios que enfrentamos em 2020 e como superá-los.

Pilares abalados
Este ano de 2020 foi um ano de muitos desafios. Em primeiro lugar, porque nossos principais pilares de segurança foram abalados: a saúde, a economia e os nossos relacionamentos.

Na saúde, ainda há muita insegurança sobre a Covid-19 em relação ao tratamento e ao atendimento. Estamos enfrentando também problemas econômicos em decorrência da pandemia, com fechamento dos negócios, as pessoas perdendo seus empregos, o aumento da desigualdade social. E estamos também enfrentando um abalo na questão das relações por conta do isolamento social e de não poder encontrar pessoalmente quem amamos.

Tudo isso exigiu uma reorganização da nossa vida. Seja na nossa casa, no nosso trabalho, em relação aos filhos ou aos planos que havíamos feito anteriormente, como festas de casamento, trabalhos, cursos. Por causa desse abalo no nossos principais pilares, está sendo um ano muito desafiador.

Finitude
Estamos sendo desafiados a lidar com a questão da morte e da finitude todos os dias. Geralmente, entramos em contato com a questão da morte e da finitude quando perdemos alguém próximo ou quando estamos doentes. Fora isso, ela costuma ser só uma ideia. A gente pensa que vai morrer velhinho, que vai perder as pessoas queridas quando elas também estiverem velhinhas.

A gente não tem esse contato do dia a dia, do cotidiano, com a morte. E agora a gente está tendo. A gente sabe diariamente qual é a taxa de contágio da Covid, qual é o número de mortes. Lidar com essa questão da morte e da finitude todos os dias é muito desafiador emocionalmente.

Frustração
Nos últimos meses estávamos vivendo um quadro aparentemente de queda do contágio, mas agora regredimos. Estamos passando por uma fase em que voltamos a ter mais restrições e isolamento.

Esse cenário anterior de melhora fez com que aumentássemos as expectativas de que logo essa situação passaria, de que talvez pudéssemos ver as pessoas queridas, que já poderíamos retomar nossos planos até de festas de fim de ano.

Por isso digo que estamos vivendo uma dupla frustração agora. Porque aparentemente tudo estava caminhando para uma melhora, mas enfrentamos uma retomada das restrições por causa do aumento do número de casos de contaminação e, consequentemente, de mortes por coronavírus.

A gente vai percebendo que não existe um encaixe perfeito entre o que a gente imaginou, a expectativa que a gente criou, e o que a vida nos oferece, a situação que nos é apresentada como possível.

Sempre há um desencaixe entre o que a gente sonha e o que é possível. Isso é normal. Mas agora a gente está vivendo mais intensamente esse desencaixe.

No início da pandemia, a gente imaginou que isso fosse durar alguns meses. E agora a gente está vendo que não, que a coisa é longa.

Adaptar planos
A questão não é a gente evitar a frustração, porque ela faz parte da vida, embora ela esteja sendo intensificada nesse momento. A questão é a gente aprender e conseguir lidar com ela.

Eu vejo duas formas de lidar com a frustração. Uma é paralisar e desistir. Ou seja, a gente tinha uma expectativa, essa expectativa não pode se concretizar, e a gente abre mão desse plano. Essa é a forma mais prejudicial em termos de modos de lidar com a frustração. Porque aí a gente não dá continuidade à nossa vida.

A segunda forma é a gente se adaptar. Ajustar os nossos planos, as nossa expectativas, os nossos sonhos, com o que a realidade apresenta como possível. Então é claro que a gente vai passar por esse momento de tristeza, de desalento, de sensação de impotência. Mas a gente vai tentar ver o que é possível e tentar se adaptar. Ou, em último caso, manter o plano e pensar que ele vai acontecer mais para frente.

Mas acho que a melhor coisa nesse momento, dado que a gente está vivendo uma situação que não se sabe exatamente quando vai acabar, é tentar adaptar os nossos planos.

Por exemplo, se há a expectativa de fazer um curso, vários cursos estão sendo feitos agora virtualmente. Faça o curso como é possível, online. É o ideal? Não. Mas isso está sendo possível. Que bom que a gente tem essa infraestrutura e essa tecnologia para isso, né?

Não dá para encontrar as pessoas que a gente ama, mas há plataformas de tecnologia para estar junto na maneira do possível. Vamos fazer uma ligação telefônica, usar aplicativos como o WhatsApp, o Zoom, ou qualquer outro meio que a gente possa ver a pessoa. Isso não vai deixar a pessoa próxima fisicamente, mas emocionalmente.

Então há formas de adaptar os nossos planos. Essa é a principal forma de lidar com a frustração. Porque aí a gente mantém a esperança e garante a continuidade da vida. A gente não desiste.

Isolamento no Natal 
Para as pessoas que estão completamente isoladas é fundamental que se mantenham em contato virtual com amigos e com a família.

Se vai passar o Natal e o Ano Novo sozinho, faça uma ceia gostosa para você mesmo, tenha um dia de cuidado consigo mesmo, procure fazer atividades que sejam prazerosas.

Mas, se possível, não fique totalmente isolado das outras pessoas. Não é porque a gente está em casa que a gente precisa ficar em isolamento completo. É importante que se faça uma ceia virtual para que o encontro seja possível.

Este fim de ano será atípico para todo mundo. Assim como durante todo o ano, é natural que agora todo mundo tenha que lidar de alguma forma com alguma questão emocional.

A gente está vivendo uma situação que é social. Ela está impactando o mundo inteiro. Claro que cada um vai enfrentar ao seu modo e que as pessoas vão viver situações diferentes, mas está todo mundo sendo afetado.

O fim deste ano vai nos exigir emocionalmente, como foi o ano inteiro e como também deve ser parte de 2021.

Luto
Para quem está vivendo o luto porque perdeu pessoas queridas para a Covid, o importante é buscar os seus afetos e não ficarem sozinhas. Estarem perto de pessoas que podem ampará-las. E para isso, de novo, a gente vai precisar das mensagens por aplicativos e chamadas de vídeo.

É importante que essas pessoas enlutadas dividam o seu sofrimento para que possam ser acolhidas. Outra coisa importante é elas não se obrigarem, especialmente por ser fim de ano, a se sentirem felizes ou a passarem rápido por esse estágio do luto.

O luto é um processo que precisa ser vivido e respeitado. O luto tem a ver com a elaboração interna, a elaboração emocional da perda, que não é uma situação fácil. Principalmente se a pessoa que morreu era muito próxima e querida. É muito importante aceitar o que está se sentindo, a tristeza, e compartilhar isso. Não ficar sozinho.

Caso a pessoa em luto perceba que está se sentindo demasiadamente triste é preciso procurar ajuda. O que estou chamando de demasiadamente triste é estar em um processo depressivo por um período muito prolongado, que se estende por muitos meses, com a sensação de perda de sentido da vida.

Se houver uma dificuldade de retomada das atividades, em um isolamento profundo, com dificuldade de comer, de dormir, é necessário a busca de uma ajuda profissional, como uma psicoterapia.

Ressignificação 
Toda situação de crise é uma oportunidade para ressignificação. E o que é a ressignificação? É uma abertura ao novo, ao diferente, ao que não foi pensado ainda.

A ressignificação é dar um novo significado a um acontecimento. Ela tem a ver com uma expansão do nosso modo de ser e de agir. Tem a ver com a gente repensar as nossas escolhas, sentido da nossa vida e das nossas relações.

Uma situação de crise e de contato com a finitude, como a que estamos vivendo, é uma oportunidade para a gente repensar o modo como a gente está sendo na vida e como a gente vem fazendo as nossas escolhas.

Não existe um ritual para que a gente se prepare para isso ou para que a gente torne a ressignificação possível. Mas a possibilidade de ressignificar vem de uma abertura e de uma disponibilidade interna.

Não é um processo fácil porque a gente tende a repetir nosso modo de ser, de resistir ao que é novo. É o mais confortável ficar no que já é conhecido.

É preciso estar aberto para questionar a si próprio e o modo como se está vivendo a própria vida.