Exaustão e incompreensão são principais queixas das mulheres, diz psicanalista Manuela Xavier

Manuela Xavier, 32, quer abrir os olhos das mulheres. Formada em psicologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense), mestre e doutora pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), ela atua como psicanalista em seu consultório em Copacabana, na zona sul do Rio, e tem mais de 300 mil seguidores no Instagram.

Na rede social, Manuela compartilha informações sobre como as mulheres podem identificar sinais de violência e sair de um relacionamento abusivo. Para ilustrar situações de abuso, a psicanalista costuma comentar casos de pessoas famosas e, além de mais seguidores, também ganha haters na internet.

Nos primeiros dias de exibição do BBB21 (Big Brother Brasil), reality show da Rede Globo, por exemplo, ela analisou o comportamento do Fiuk na casa e se tornou alvo de fãs do cantor.

Polêmicas à parte, Manuela conta que seu objetivo é transmitir conhecimento sobre a causa feminista. “As mulheres não precisam frequentar a universidade para saber o que é patriarcado“, afirma.

Em março do ano passado, atenta em relação a como o isolamento social poderia ter impacto na violência doméstica, ela criou os coletivos Escuta Ética, com psicólogas que atendem voluntariamente mulheres em situação de vulnerabilidade, e Nós Seguras, com advogadas que prestam apoio jurídico gratuito em situações de violência.

Com 12 anos de experiência em clínica, Manuela revela que as mulheres ainda ficam constrangidas ao falar sobre um relacionamento abusivo porque se sentem culpadas. “Muitas mulheres têm vergonha porque entendem que isso é uma culpabilização individual. Que aquela violência que elas estão sofrendo é culpa delas. E que elas estão fazendo por merecer aquilo. Elas não entendem que é uma violência coletiva e estrutural”, diz.

A psicanalista observa que as principais queixas das mulheres em consultório são exaustão e incompreensão. “Eu diria que a exaustão acontece porque existe uma sobrecarga enorme sobre as mulheres. E a incompreensão porque elas sentem que ninguém entende o que elas dizem, já que elas são sempre tachadas de loucas, exageradas, dramáticas.”

Por que você decidiu trabalhar com pacientes mulheres e com temas relacionados ao feminismo? 
Foi pela própria clínica. Atendo clinicamente há 12 anos e a demanda na clínica é majoritariamente feminina. É um exercício para pensar: se as mulheres procuram mais a clínica é por que esse é um espaço exclusivo para mulheres? Não, não é só para mulheres. Mas por que as mulheres trazem mais esse sofrimento? Há muitas mulheres sofrendo e muitas mulheres procurando recursos. E os homens? Como estão lidando com o sofrimento deles? Acho que essa é uma questão. Então fui fazendo essa constatação de que a clínica é um espaço que as mulheres se sentem convocadas a ocupar. Tanto porque elas são maioria nos cursos de psicologia quanto porque são maioria na clínica também. As mulheres estão convocadas a pensar seus sofrimentos.

E porque, escutando as histórias das mulheres, percebi que certos sofrimentos não são individuais. Muitos sofrimentos que as mulheres levam ao consultório são sofrimentos coletivos. Não é possível que elas estão tendo os mesmo problemas individualmente. Todas são muito parecidas? Ou é um sistema que produz sofrimentos muito específicos nas mulheres?

Fui entendo que a clínica é majoritariamente feminina, os cursos de psicologia são majoritariamente femininos, as dores das mulheres são, de forma coletiva, muito parecidos. Então existe um sistema de opressão que causa esse sofrimento nas mulheres. Foi a partir daí que me aprofundei nesse tema, no feminismo, e nesse tipo de sofrimento que atravessa todas nós.

Com as redes sociais estimulando debates como o que é um relacionamento abusivo e os tipos de agressão contra as mulheres (física, sexual, psicológica, patrimonial e moral), você acha que as mulheres estão ficando mais atentas e tendo maior facilidade para sair de –ou até mesmo evitar– um relacionamento abusivo nos últimos anos? 
Sim, acho que as mulheres têm mais facilidade para identificar um relacionamento abusivo atualmente. Como esse tema tem sido massivamente falado, elas têm mais facilidade para identificar, porque hoje em dia é mais difícil você cair no golpe do cara que é ciumentão, do cara que é valentão. Você já consegue sacar que tem um perigo.

Apesar de ainda existir uma contracorrente que valoriza muito esses aspectos da virilidade. A gente identifica em certas músicas, por exemplo. No sertanejo, algumas têm refrões do tipo: “Vai namorar comigo, sim! Não quero nem saber, você vai ser minha, sim”. Então existe ainda uma contracorrente cultural que reforça os estereótipos de masculinidade, de virilidade, de violência.

Mas existe um outro ponto também que é o fato de a violência ir se remasterizando. Ela vai se atualizando. A gente vai identificando os sinais, os padrões de violência, mas os homens, os agressores, vão percebendo no que as mulheres já não caem mais. Então tem que mudar a violência. Não que haja uma reunião entre os homens e eles decidem o que vão fazer: “Nossa, vamos mudar nossa tática”. Não é isso, claro. Mas os abusos vão ocorrendo de outras formas. E nós vamos ter que ficar cada mais atentas aos sinais.

Antigamente, por exemplo, a gente achava que violência era só o cara bater. Depois a gente entendeu que xingar também é violento, que o cara segurar o nosso dinheiro também é violento, que fazer tortura psicológica também é violento. A gente entendeu também que o cara ignorar e tratar com frieza é violento. Então hoje as mulheres estão mais atentas e conseguem identificar esses sinais de abuso.

E também, por causa das grandes denúncias que se tornam públicas, as mulheres tomam força para conseguir sair de um relacionamento assim. Porque entendem que aquela violência que elas vivem não é culpa delas e isso dá força para elas saírem. Elas entendem que isso é uma coisa estrutural. Mas acho que também existem outras violências sendo atualizadas que a gente vai precisar fazer o esforço de mapear, que a gente ainda não sacou muito bem.

O que as mulheres de 2021 têm de vantagem em relação às mulheres do período pré-internet e redes sociais? Hoje elas têm uma orientação melhor sobre como agir e para quem denunciar uma agressão, por exemplo? 
A informação e o trabalho que o movimento feminista vem fazendo, desde as sufragistas, e agora com essa nova onda de feminismo que se espalha pela internet, que a gente dissemina informação. Hoje meninas de 14 anos já estão ligadas no que é patriarcado, já falam sofre dar mais poder às mulheres. Isso se dá pela informação que circula. Hoje em dia é mais fácil a gente ter esse acesso.

As mulheres não precisam frequentar a universidade para saber o que é patriarcado, porque está aí na internet, está na música. Hoje a gente tem várias cantoras feministas, tem documentários feministas, está nos veículos de informação. Porque já se entendeu que certas coisas não vão passar mais, que a gente vem fazendo uma pressão.

Acho que a vantagem que as mulheres têm atualmente é graças aos avanços do movimento feminista e pela própria internet, por onde a comunicação circula. A notícia de que uma mulher que sofre violência lá no sertão de Pernambuco chega ao Brasil inteiro. Ou uma brasileira for agredida na Suécia, isso chega no Brasil inteiro também. Essa informação circula de uma forma muito potente.

E hoje temos outras narrativas. Com a internet, a gente tem uma democracia maior das narrativas. A informação não está mais só no Jornal Nacional. Temos jornalistas independentes, temos outras mídias independentes e de livre acesso. Com isso, temos a ascensão de outras vozes. Essa é uma vantagem.

Também há a orientação de coletivos que estão presentes nas redes sociais e orientam como agir, mostrando os lugares que a mulher deve procurar em caso de violência. Também temos a delegacia da mulher, que é  conquista.

As mulheres ainda têm vergonha de falar sobre um relacionamento abusivo?
Sim. Por mais que haja o conhecimento, não vai ser hoje, não vai ser daqui a dez ou 50 anos que a gente vai mudar uma ideia implantada com séculos de opressão.

Muitas mulheres têm vergonha porque entendem que isso é uma culpabilização individual. Que aquela violência que elas estão sofrendo é culpa delas. E que elas estão fazendo por merecer aquilo. Elas não falam porque elas se sentem culpadas. Elas não entendem que é uma violência coletiva e estrutural.

Ninguém tem vergonha de dizer que foi assaltado, que caiu em algum lugar, porque quando você é assaltado ou quando você leva um tombo, você entende que não foi culpa sua. Mas quando você é violentada pelo seu parceiro, você tem vergonha de dizer porque acha que a pessoa para quem você vai contar não vai acreditar em você.

Isso acontece porque os abusadores sabem parecer muito legais, eles sabem ser muito convincentes. A mulher que vive a violência sabe que o cara é um agressor, mas ela sabe também que as pessoas com quem esse casal podem não acreditar nisso. Geralmente, as pessoas acham que esse cara é legal, é um cara inteligente, um cara articulado, um cara apaixonado, um cara cuidadoso. Faz parte da dinâmica do relacionamento abusivo o cara fazer essa cena para os outros. Esse, inclusive, é um dos sinais: o cara está fazendo muita declaração pública de amor? Desconfie desse lado.

Quais são as principais queixas que aos mulheres levam ao consultório? Existe uma queixa principal da mulher do século 21?
No geral, as queixas giram em torno de exaustão, cansaço e incompreensão. Esses são os sentimentos. Há muitas queixas de solidão, relacionamento também é uma queixa muito comum. Mas posso dizer que são abusos em geral. Abusos familiares que recaem sobre as mulheres, abusos de trabalho que recaem sobre as mulheres, com os assédios de trabalho e abusos nas relações.

Eu diria que a exaustão acontece porque existe uma sobrecarga enorme sobre as mulheres. E a incompreensão porque elas sentem que ninguém entende o que elas dizem, já que elas são sempre tachadas de loucas, exageradas, dramáticas.

Esses sintomas são comuns porque, nas narrativas dessas mulheres, essas queixas de abusos, abusos familiares, recaem de uma forma muito mais radical sobre as mulheres do que sobre os homens. Abusos nas relações de trabalho também, porque as mulheres são muito assediadas e abusadas no trabalho.

Se tem uma queixa da mulher do século 21 acho que é a dificuldade de se expressar. Elas são tachadas de raivosas quando expressam o que estão sentindo. É uma nova tática de silenciamento. É assim: você pode falar tudo, mas fala tudo para eu dizer que você está errada. É essa deslegitimação na denúncia.

A gente já ganhou o direito de falar, mas a gente ainda não ganhou o direito de ser ouvida. Porque é muito diferente. A gente ganhou o direito de falar, sim, não nego, mas a gente ainda não ganhou o direito de ser ouvida. A gente ainda é tachada de doida, dramática, chata. Acho que essa é uma queixa geral da mulher do século 21.

Vai demorar quantas décadas para a mulher ser respeitada e valorizada de igual para igual com um homem no ambiente de trabalho e na sociedade?
Não acho que vai demorar décadas, mas séculos. Porque o patriarcado é um sistema de poder e de forças muito poderoso e a gente vai precisar de muito tempo de representatividade, de disputa de narrativa, de redistribuição de renda, de outra implementação de políticas. No trabalho e na sociedade, a gente vai precisar de séculos de luta para conseguir sobreviver de uma forma mais digna, mais humana.

Qual é o seu objetivo com as informações que você compartilha nas redes sociais e com os cursos como a leitura dirigida do livro “O mito da beleza”, da escritora Naomi Wolf?
Meu objetivo é abrir os olhos das mulheres. Estou comprometida com o despertar das mulheres, com a emancipação das mulheres, para que as mulheres não se sintam sozinhas.

Em março do ano passado, eu já sabia que a pandemia impactaria ainda mais as mulheres e criei um coletivo de psicólogas, o Escuta Ética, com profissionais que atendem voluntariamente e gratuitamente outras mulheres em situação de vulnerabilidade e de violência. E também formei um coletivo de advogadas, o Nós Seguras, com profissionais que prestam assessoria e apoio jurídico gratuito a mulheres em situação de violência.

Quero que no meu perfil, com o meu trabalho, as mulheres sintam que elas têm lugar, sintam que elas têm acolhimento e apoio, e que elas tenham informação e conhecimento.

Que as mulheres que não tiveram oportunidade de frequentar uma universidade, que não tiveram oportunidade de ler livros com o da Naomi Wolf, os da Simone de Beauvoir, os da Angela Davis, os da Lélia Gonzalez, que essas mulheres possam ali ter as informações sobre essa estrutura que nos oprime.

Nós ficamos muito alienadas e relação a essas opressões porque a sociedade nos oferece substratos de alienação. É um programa de TV, é a fofoca dos famosos. E o meu trabalho é muito sobre ocupar esse lugar, como: A fofoca do famoso diz o que sobre a sua vida? A fofoca do famoso guarda uma lógica de opressão que atua na sua vida também, mulher, sabia?

O meu papel é ir traduzindo todas as informações que chegam nas músicas, nos filmes, na novela, na página de fofoca e como que isso dá sinais e denuncia a nossa engrenagem da opressão. O meu objetivo é mostrar para as mulheres como que funciona o sistema para que elas não se sintam sozinhas.

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