‘Dez Dias num Hospício’, de Nellie Bly, mostra negligência e desrespeito com a saúde mental que duram até hoje
“Bem, é melhor você não esperar nenhuma gentileza aqui, porque você não vai receber.” A frase foi dita por uma enfermeira do Hospício de Alienados de Blackwell’s Island a Nellie Bly, uma jornalista que, em 1887, fingiu ser louca para conseguir se internar no local e fazer uma série de reportagens sobre como os internos eram tratados lá.
Era a primeira noite de Nellie na instituição, mas ela já havia passado por um exame médico estapafúrdio –no qual um médico e essa mesma enfermeira ficavam se paquerando e mal lhe davam atenção–, jantado pão com manteiga rançosa e cinco ameixas secas, tomado um banho gelado –na mesma banheira em que outras mulheres também se lavaram, sem trocar a água— e vestido uma camisola com o corpo ainda úmido.
Quando ouviu a resposta ríspida da senhorita Grupe –a enfermeira–, Nellie estava apenas pedindo uma roupa seca. Era fim de setembro em Nova York. “As pacientes estavam azuladas de tanto frio”, escreveu no texto que seria publicado no jornal New York World.
Posteriormente, as reportagens se transformaram no livro “Dez Dias num Hospício”, que agora é reeditado pela editora Fósforo, com prefácio da jornalista da Folha Patrícia Campos Mello e tradução de Ana Guadalupe.
Os relatos de Nellie denunciam um sistema falho que se estendeu até o século 20 e só começou a ser desmantelado com a reforma psiquiátrica, a partir dos anos 1970. Ela não tinha nenhum transtorno mental, mas foi examinada por vários médicos que atestaram sua insanidade. “Quanto mais eu agia e falava com lucidez, mais louca me consideravam”, diz.
A jornalista também conta histórias de outras mulheres que foram internadas junto com ela e que pareciam tão sãs quanto, inclusive uma alemã, a senhora Louise Schanz, que não sabia falar inglês e foi encaminhada ao internato pelo próprio filho. Muitas pacientes que se comportavam normalmente haviam sido deixadas lá por maridos e familiares, talvez como uma maneira de se livrarem delas.
Assim como ocorreu em outros hospitais psiquiátricos no mundo todo –no Brasil, os casos mais famosos são os do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais, que deu origem ao livro “Holocausto Brasileiro“, de Daniela Arbex (editora Intrínseca), e do Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha (SP), cuja história é contada em “Cinzas do Juquery”, de Daniel Navarro Sonim e José da Conceição (editora Noir)–, o Blackwell’s Island era um depósito de gente. Nas palavras de Nellie, “uma ratoeira humana; é fácil entrar, mas, uma vez lá, é impossível sair”.
As internas eram vítimas de negligência médica, maus-tratos, tortura e sadismo por parte dos profissionais de saúde. Elas eram agredidas pelas enfermeiras e sofriam ameaças se tentassem contar qualquer desses episódios aos médicos. Estes, por sua vez, não lhes davam atenção e diziam que suas queixas eram delírios.
Além de viverem constantemente com medo de apanhar e com fome –às vezes era servida comida estragada–, as pacientes eram encarregadas da faxina do ambiente. No tempo livre, as que estavam na mesma ala que Nellie eram obrigadas a ficar sentadas eretas em um banco, sem poder mudar de posição, das 6h às 20h. “À exceção da tortura, que tratamento levaria uma pessoa à loucura com mais rapidez? Aquele era mesmo um grupo de mulheres internadas para serem curadas?”, questiona a autora.
De fato, não era feito nenhum esforço para que essas internas fossem tratadas. Nellie cita o uso de morfina (opioide) e cloral (hipnótico), mas o surgimento dos psicofármacos só aconteceria na década de 1950. A eletroconvulsoterapia, que ainda é utilizada em casos específicos, e intervenções absurdas como a lobotomia foram desenvolvidas em 1930.
No Blackwell’s Island e em outras instituições psiquiátricas, não havia o conceito de bem-estar, recuperação ou reinserção desse público na sociedade. A existência desses lugares se dava em um contexto em que a prática era isolar e excluir aqueles que incomodavam ou não se encaixavam no ideal de moral e bons costumes, fossem pessoas com transtornos mentais, mulheres que não obedeciam aos maridos, homossexuais, subversivos, pobres ou velhos. Essa conduta, executada por séculos, circundou o debate sobre saúde mental de preconceitos e estigmas que persistem até os dias atuais.
Dez Dias num Hospício
Nellie Bly, editora Fósforo, 112 págs., R$ 49,90