Usamos só 10% da mente? Criamos um hábito em 21 dias? Neurocientista explica mitos sobre o cérebro
O cérebro é o principal órgão do sistema nervoso. Quando afetado por uma lesão, pode comprometer diferentes capacidades como a fala, a visão, a memória e até mesmo o comportamento.
Essa estrutura tão complexa, formada por cerca de 86 bilhões de neurônios, ainda é um mistério para médicos e cientistas. Com o avanço das pesquisas na neurociência, boa parte das certezas que os especialistas tinham há alguns anos sobre seu funcionamento não é mais válida atualmente.
O neurocientista Andrei Mayer, professor do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e administrador do canal do Youtube A culpa é do cérebro, ajuda a desvendar alguns mitos sobre o cérebro.
É verdade que usamos apenas 10% da nossa capacidade mental?
Esse é um dos maiores mitos da neurociência. Todos nós usamos 100% do cérebro. O sistema nervoso é muito custoso para o corpo do ponto de vista de gasto energético. Então não faria sentido usar somente 10% dele.
Inclusive, em alguns quadros clínicos, como quando a pessoa nasce cega ou fica cega, a região do cérebro que antes processava informação visual, passa a ser usada para outro fim, para processar outras informações.
Isso explica por que cegos têm maior capacidade de discriminação tátil nos dedos, por exemplo. Em parte porque eles treinaram para ler em braile, mas entende-se também que isso pode acontecer porque a área do cérebro que deveria processar informação visual agora processa outro tipo de informação. No caso, as informações vindas do toque dos dedos.
Então mesmo quando uma área que deveria ser usada para um fim, se ela não estiver sendo usada, ela vai ser usada para outra função Ou seja, a gente usa 100% do cérebro de um jeito ou de outro.
Mas é importante fazer uma ressalva: a gente usa 100% do cérebro, no entanto existe um mecanismo muito bonito no sistema nervoso que faz com que a gente priorize o processamento de uma informação em detrimento de outras. A gente chama isso de atenção.
Quando a gente está prestando atenção em alguma coisa, o que o cérebro faz é priorizar o processamento dessa informação. Então, ao mesmo tempo que aumenta o processamento de uma coisa, inibe o restante. O que é bem custoso para o cérebro em vários aspectos, do ponto de vista energético também. Então, de certa maneira, a gente não tem o cérebro superativo, ele está priorizando uma coisa ou outra, dependendo do que você está fazendo.
Nesse sentido, a gente não está superativando o cérebro todo ao mesmo tempo, mas isso não quer dizer que a gente não usa o cérebro todo.
É verdade que os homens usam mais o lado esquerdo do cérebro, enquanto as mulheres usam mais o lado direito?
Mito. A gente não pode dizer que os homens usam mais um lado e as mulheres o outro. Na verdade, a gente não pode dizer isso sobre pessoa nenhuma. A gente usa o cérebro todo. Ninguém, homem ou mulher, usa mais um hemisfério do que o outro.
O que pode acontecer é que algumas funções possuem lateralidade, ou seja, um dos hemisférios do cérebro está mais envolvido no processamento dessa função do que o outro.
A linguagem, por exemplo, está bastante relacionada com o hemisfério esquerdo. Nas áreas relacionadas com o processo auditivo e vocal da linguagem, de compreensão, de fala, o processamento normalmente ocorre mais no hemisfério esquerdo. Mas isso varia até se a pessoa é destra ou canhota. Na pessoa destra, você pode encontrar uma preferência do hemisfério esquerdo, uma taxa de 95%, e o canhoto é algo em 70%.
Então existe uma lateralidade de algumas funções sim, como a linguagem. No entanto, existe uma variabilidade de acordo com a pessoa. Mas a gente não pode dizer que pessoa nenhuma, seja homem ou mulher, usa mais um hemisfério do que o outro.
As diferenças entre cérebro masculino e feminino são muito discutidas na literatura. E essa história de ter diferenças do ponto de vista anatômico e funcional, se as conexões são diferentes, se o cérebro do homem tem mais facilidade para uma coisa e o da mulher para outra, vem caindo por terra há bastante tempo.
Não dá mais para a gente afirmar que tem diferença, que homem é melhor com raciocínio espacial e mulher é melhor com linguagem, por exemplo. Isso vem sendo refutado, porque nas ciências essas coisas levam tempo, né? São evidências em cima de evidências.
Porém, atualmente, existem trabalhos que mostram que há diferenças do cérebro do homem e da mulher em relação à lateralidade. Inclusive, em relação às regiões que estão mais ou menos conectadas entre os hemisférios. Há evidências mostrando que nos homens, certas áreas, por exemplo, envolvendo controle motor, estão mais conectadas. E no cérebro das mulheres são outras regiões mais envolvidas com criatividade e intuição.
Mas é preciso tomar muito cuidado ao interpretar esses dados. Primeiro, porque não quer dizer que vai ser assim por causa do sexo. Às vezes, é um reflexo cultural, em que aqueles cérebros se desenvolveram ao longo dos anos. E, segundo, não quer dizer que isso vai refletir numa diferença funcional de fato. Mesmo que a gente veja ali uma evidência de diferença de conexões, não quer dizer que um cérebro vai ter realmente mais facilidade para uma coisa do que para outra.
Um vi uma metanálise recente –que é aquele tipo de estudo que faz uma análise estatística de outros estudos e chega a uma conclusão– que mostrou que não há diferenças. As diferenças que são encontradas entre os cérebros de homens e mulheres estão mais relacionadas ao tamanho do órgão, o que pode variar de indivíduo para indivíduo também, independentemente se for homem ou mulher.
E parece que essas diferenças que são encontradas não têm nada a ver com sexo. Então essa história de haver um dimorfismo, que é a diferença na morfologia, na estrutura entre mulher e homem, parece que não é bem assim, não.
Eu diria que esse é um ponto muito debatido e que na altura em que nós estamos dessa discussão, nós não podemos afirmar que existem diferenças anatômicas e funcionais entre o cérebro da mulher e o do homem. Ainda que haja uma evidência ou outra para isso, há também evidências de que não é assim. Então a gente não pode afirmar.
É verdade que precisamos de 21 dias para criar um hábito?
Mito. Essa história surgiu com um médico cirurgião-plástico americano chamado Maxwell Maltz, que na década de 1960 observou que seus pacientes demoravam 21 dias para se acostumar com uma mudança no corpo. Mas isso não foi um estudo científico e não tem nada a ver com criar um hábito. Acho que foi daí que surgiu esse telefone sem fio.
Formação de hábito é um aprendizado. Assim como andar de bicicleta, qualquer aprendizado depende de mudanças que acontecerem no cérebro, e essas mudanças são afetadas por diversos fatores, como foco atencional, sono, motivação e número de repetições. O tempo que leva para formar um hábito varia muito, pode ser menos de 21 dias ou muito mais.
Há um trabalho muito citado, de uma pesquisadora chamada Phillippa Lally, da University College London, na Inglaterra, que mostra que criar um novo hábito pode variar de 18 a 254 dias.
É verdade que os testes de QI medem a inteligência de uma pessoa precisamente?
Mito. Já existe um grande debate na literatura científica sobre isso, muita crítica sobre os testes de QI por vários motivos. Um dos principais é que, do ponto de vista do cérebro, a gente não tem uma grande inteligência, a gente tem vários circuitos envolvidos para processar vários tipos de informação que correspondem com tipos de inteligencia.
Um exemplo que gosto de dar é sobre a capacidade de comunicação com as outras pessoas, a escrita ou a oral. Isso envolve circuitos específicos do cérebro, não é uma tarefa simples.
Quando você está falando com alguém, você tem que pensar em tudo o que você vai falar. Você está processando o que a pessoa vai entender, o que ela vai pensar, o que ela vai sentir, o que é melhor dizer, o que é melhor não dizer. Isso é um tipo de inteligência que a gente pode chamar de social, digamos assim, e envolve circuitos diferentes daqueles que a pessoa usa para jogar futebol ou controlar os movimentos do corpo, por exemplo.
Esse negócio de um teste para medir a inteligência já caiu por terra há muito tempo. Tem trabalho muito impactante cientificamente, em que os pesquisadores fizeram uma série de avaliações com milhares de pessoas em relação à capacidade de memória, ao raciocínio, à atenção. Eles tentaram correlacionar isso com um teste de QI padrão e não encontrar relação nenhuma.
Ou seja, o teste não estava conseguindo prever nenhum tipo de inteligência cognitiva segundo essas avaliações de memória e atenção. Então há muitas controvérsias sobre o teste de QI.
Existem vários tipos de testes de QI. E, curiosamente, muitos dos que são utilizados atualmente são bem antigos, criados nas décadas de 1920 e 1930. Foram revisitados e sofreram algumas atualizações, mas de modo geral é importante lembrar que são testes criados há muitos anos. Eles avaliam alguns aspectos básicos da cognição, como habilidades verbais, raciocínio e memória.
É verdade que é possível aprender outras línguas enquanto a gente dorme?
Mito. Com certeza é um mito. Não dá para aprender uma língua nova enquanto dorme. Mas devemos ressaltar que o sono é um processo muito importante para o aprendizado. Há uma série de eventos que acontecem no cérebro enquanto dormimos para consolidar na memória aquilo que aprendemos durante o dia. Porém, ele não é capaz de adquirir informações novas, num ambiente externo, enquanto estamos dormindo.
Não adianta nada botar um fone de ouvido enquanto dorme, com alguém falando outra língua, porque o cérebro vai estar num padrão de atividade totalmente diferente, que o impossibilita de registrar essas informações.
Mas, de fato, o sono é fundamental para o aprendizado. Uma pessoa que está dormindo mal vai ter sua capacidade de aprendizado muito prejudicada.