Constelação familiar é pseudociência e se baseia em positividade tóxica, diz psicólogo

Constelação familiar é um tema capaz de gerar os debates mais acalorados entre os psicólogos que se opõem à prática e aqueles que a defendem.

Desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger (1925-2019) a partir dos anos 1970, é uma técnica que mistura elementos do psicodrama, como encenações dramáticas, gestalt-terapia, que enfatiza a responsabilidade do paciente, e religião do povo zulu (Hellinger viveu como missionário católico na África do Sul), que acredita na interferência de espíritos ancestrais.

Um dos objetivos da constelação é resolver conflitos familiares em poucas sessões. A técnica se baseia nas chamadas três leis do amor: a lei do pertencimento, que inclui no núcleo familiar parentes que morreram há muitas décadas ou mesmo bebês que foram abortados, a lei da hierarquia, na qual os pais estão acima dos filhos, e a lei do equilíbrio, que envolve o respeito entre todos esses membros.

Nessa dinâmica, o constelado pode descobrir que está repetindo o mesmo erro que um antepassado cometeu, por exemplo, e que precisa perdoar os familiares, mesmo em situações que envolvam violência e abusos sexuais.

A prática não é reconhecida pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia) nem pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), mas é aceita e pode ser aplicada como terapia complementar à psicoterapia pelo SUS (Sistema Único de Saúde), além de fazer parte da grade curricular de algumas faculdades de psicologia. A constelação também é utilizada no sistema judiciário para ajudar a resolver conflitos familiares e casos de violência doméstica.

Para o psicólogo cognitivo Bruno Farias, a técnica se baseia em positividade tóxica. “Nas constelações, uma mulher nunca pode ter raiva do homem que praticou violência sexual. Ela é aconselhada a acreditar que o abuso foi atraído para a vida dela e que existe um aprendizado ali. Já vi casos em que o tal aprendizado era fazer a vítima ter humildade e aceitar que a violência sexual era a única forma que aquela pessoa tinha para mostrar que a amava”, afirma.

Farias diz que a terapia pode causar danos em pessoas que sofrem de depressão e que não há evidências científicas que comprovem seus benefícios.

Leia abaixo a entrevista com o psicólogo.

O que é constelação familiar? Como Bert Hellinger desenvolveu essa prática?
É uma pseudociência e uma pseudoterapia. Hellinger copiou técnicas das mais diversas escolas de psicologia, como a gestalt, terapia familiar e psicodrama. Criou uma teoria nonsense misturando pensamentos do povo zulu junto com misticismos e muitos preconceitos, como patriarcalismo, misoginia, homofobia e muito mais.

Hellinger acreditava que durante as sessões de constelações familiares era possível se conectar a um campo de energia e, por meio da intuição, dos participantes, esse campo revelaria segredos ocultos no sistema familiar do paciente constelado. Esses segredos geralmente eram abusos sexuais, abortos, adultérios e crimes. É algo tão bagunçado e sem sentido que chega a ser uma ofensa a nossa inteligência.

Por que muitos psicólogos são contra a aplicação da constelação familiar? 
Pelos danos profundos que as constelações causaram em vários pacientes. Estudos holandeses e alemães mostram que as constelações familiares são uma prática carregada de tantos preconceitos, misticismos e culpabilidade que a tornam perigosa.

Quais são os principais problemas relacionados à constelação familiar? 
Os problemas são infinitos. Se eu puder resumir seriam: total ausência de evidências científicas, total ausência de fundamentação, não existe nenhum estudo que corrobore a prática.

O modo como as constelações acreditam que podemos resolver nossos problemas está baseado em positividade tóxica. Por exemplo, nas constelações, uma mulher nunca pode ter raiva do homem que praticou violência sexual. Ela é aconselhada a acreditar que o abuso foi atraído para a vida dela e que existe um aprendizado ali. Já vi casos em que o tal aprendizado era fazer a vítima ter humildade e aceitar que a violência sexual era a única forma que aquela pessoa tinha para mostrar que a amava. É absolutamente repugnante.

A constelação familiar pode oferecer riscos se for substituída pela psicoterapia para pacientes que estão sofrendo de depressão grave, por exemplo?
Sim, absolutamente. Depressão é um quadro sério e muito delicado. Até mesmo profissionais experientes se veem desafiados frente a um caso de depressão. Imagina encaminhar um paciente para uma pseudoterapia que irá culpar a pessoa pelos seus problemas e irá fazê-la acreditar que a depressão foi causada pelo aborto cometido e escondido pela sua tataravó. Os danos são incalculáveis. Há estudos realizados na Holanda que mostram que as práticas das constelações familiares podem levar a ideação suicida.

Consteladores familiares prometem curas rápidas e definitivas, o marketing é muito bom. Acusam a medicina de ter pacto com a indústria farmacêutica e a psicologia de ser atrasada.

Quando apresentamos os danos que as constelações causaram em tantas pessoas, isso é o máximo que eles conseguem responder para o público: “procurem consteladores sérios e não existirá problema”.

Não estamos dizendo que as pessoas que acreditam em constelações familiares são seres humanos ruins, estamos dizendo que a prática em si é absurda.

Os livros do Hellinger são profundamente preconceituosos e sem nenhuma seriedade. Como é possível existir algum profissional sério que pratica uma pseudoterapia tão destrutiva?

A constelação familiar não é reconhecida pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia) nem pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), mas é aceita e pode ser aplicada como prática complementar à psicoterapia pelo SUS (Sistema Único de Saúde). 
Não consigo encontrar explicação para isso. Profissionais da área da saúde, que tenham o mínimo de empatia pelos pacientes, se sentem de coração partido ao ver dinheiro público sendo desperdiçado com práticas tão controversas.

Essa prática também é usam por juízes para resolver conflitos familiares nos tribunais. Como psicólogo, o que você acha disso?
Abominável. Estamos empurrando uma prática sem nenhum fundamento para pessoas que se encontram em situações de alta fragilidade. O número de pessoas prejudicadas por conta disso é assustador.

Existe algum estudo científico que comprove o benefício dessa prática e que justifique ela fazer parte de grades curriculares de algumas faculdades de psicologia? 
Não, não existe nada. Consteladores familiares do Brasil estão invertendo o ônus da prova. Querem que nós, cientistas, apresentamos provas de que não funciona. Mas isso é absurdo. São eles quem precisam desenvolver estudos sérios e provar que a prática é eficiente e segura, mas até o presente momento, não existe nenhum estudo que possa ser levado a sério.

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